POR POLLYANA QUINTELLA
Riscar como quem deriva, não como quem escreve. Ou escrever como quem desenha – rabisca. Um traçado é também uma trilha, um caminho percorrido. O risco difere do signo, no sentido de que é uma marca, um rastro deixado justamente pela parte ausente daquilo que significa. Todo signo presente é, portanto, necessariamente composto de traços de uma ausência definidora. A boca que abre e fecha – a que diz e enuncia – é a mesma que engole, lambe e mastiga; estranha máquina que põe os sentidos de pé enquanto tritura e destrói outras formas. Nesta exposição de Bruno Rios, vemos um conjunto de obras que transmitem algo sobre a natureza da linguagem que está geralmente obliterado pela mensagem verbal. Como seria possível evocar a escrita e ao mesmo tempo se distanciar dela? Como, simultaneamente, nomear e expandir os limites negociáveis do possível?
Em “Faca, palavra e outras coisas para lamber”, série protagonista da mostra, percorremos uma escrita repleta de arranhões entre o signo e o traço mudo, entre a iminência de uma forma significante e a expressão gestual. Em alguns casos, não há sequer palavras reconhecíveis, antes traçados (como escritas pré-letradas da infância) que buscam se espraiar sobre a escuridão de seu suporte – talvez sejam como sussurros, balbucios, gagueiras, segredos inscritos que nos convidam a estabelecer leituras outras a partir de resistências implícitas. Noutros, há versos mais expressos, palavras que se chocam segundo apelos sinestésicos e contrastantes. Trata-se de uma interação constante entre a produção de reconhecimento (familiaridade) e desconhecimento (falha e subversão da própria ideia de significação). Forjada essencialmente na gravura, tal escrita é ainda o negativo de seu próprio gesto, produto da falta e do vazio, corte na superfície, espécie de duplo falho do real; sombra, reflexo errante, espelho opaco: imagem que aponta o reconhecimento de si própria num outro, sublinhando o aspecto de “presença ausente” que estrutura a compreensão que temos da linguagem. Sua condição fragmentada faz lembrar ainda a profusão de recados e vozes inscritas em negociação com o espaço público da rua, seus muros e superfícies profanáveis – livro infinito por excelência. Na medida em que opera entre o desejo de erigir sentido e produzir sua própria dissolução, esta série nos leva a encarar o texto do mundo na condição de sua frágil legibilidade, rememorando que linguagem também é, antes de tudo, plasticidade e desenho.
As operações conceituais que aproximam gravura e linguagem também podem ser notadas aqui mesmo em obras de distintas materialidades. Em ‘Braba’, são murros e pontapés que imprimem o gesto sobre a argila, já em ‘SMACK’, a evocação do beijo nos leva a encarar o objeto como carimbo, apesar do contraste semântico e material entre o batom e a pedra. Em ambos, importa o caráter indicial que estrutura a obra, também reforçado pelos títulos que nos levam a imaginar a ação sobre estas substâncias, fazendo lembrar a fisicalidade da mão. Há ainda outros dois casos que valem o comentário: ‘Toco’, cuja superfície do tronco, além de inteiramente coberta de nanquim, apresenta um risco produzido através da incisão de uma goiva, sendo a um só tempo escultura, matriz de gravura e papel primevo; fazendo coincidir suporte e produto final. Vazio por dentro, o toco torna-se ainda oco, pura exterioridade já anunciada pela própria palavra. Já em ‘Pupa’, um longuíssimo fio de barbante é inteiramente enrolado sobre um suporte de madeira, aproximando a escrita da materialidade do fio. Lembremos que a palavra texto vem de textere que, em latim, significa tecer. Toda escrita é, em primeira instância, um entrelaçamento de fios; costura.
Por distintos percursos, essas são obras interessadas em desafiar as estruturas convencionais da linguagem, à procura de expandir nossos modos de escrever o mundo e a nós mesmos. Se não é possível existir fora da linguagem, é através dela que sofisticamos uma imaginação que permite organizar o real, testar modos de viver e sonhar coletivamente, ontem e hoje. Bruno Rios forja uma escrita para além dos significados pois tudo aqui está dotado de presença. Seus riscos brancos iluminam o céu da gravura como se traduzissem a teimosia de um gesto que resiste à escuridão iminente. Eles acendem e apagam, sobem e descem… como no pulsar de um organismo vivo.
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ECO
2021
Vídeo, 3’00”
ELÃ
2020
Vídeo, 6’39”
Bruno Rios (Belo Horizonte, 1989) é artista-pesquisador, Mestre em Artes pela UFMG e graduado em Artes Gráficas pela mesma instituição. Trabalha com as mais variadas técnicas, onde conceitualmente se interessa pelas questões relacionadas ao corpo, à paisagem, ao deslocamento, ao jogo, à palavra e ao desenho.
Como artista participou de importantes residências, exposições e publicações. Dentre elas destacam-se: Chão de Passagem (exposição individual no espaço Mamacadela, 2019); Corpo Tangente (exposição individual no Palácio das Artes, 2013); VI e IX Bang – Festival Internacional de Video Arte de Barcelona (Arts Santa Monica-Espanha, 2013 e 2016); I Bienal Universitária (espaço 104, 2012); 11º Spa das Artes (Recife, 2013). Participa ainda da Residência Artística da FAAP (São Paulo, 2020); do Fórum de Fotoperformance (BDMG Cultural, 2019); do Programa de Residências Internacionais do JA.CA (Nova Lima, 2017); da residência Muros: Territórios Compartilhados (Salvador, 2013); do Programa de Residência Jardim do Hermes (São Paulo, 2015) e da Residência da Feira Plana (São Paulo, 2015). Foi indicado ao Prêmio Pipa 2020, premiado na Mostra EBA-UFMG em 2011, na exposição dos finalistas do Prêmio EDP nas Artes no Instituto Tomie Ohtake em 2014 e possui obras no acervo do Museu de Arte da Pampulha.
Email: prumoprumoprumo@gmail.com
Site: www.brunorios.org
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