CAOSGENESE
Marina Câmara
A prática artística à qual Marc Davi se dedica constitui, cada vez mais, algo que é da ordem tanto da implosão quanto da explosão. Cada trabalho seu se dá como uma fervura, uma erupção de um processo de elaborações as quais o artista permite conduzirem a alguma forma que, na maioria dos casos é, na verdade, uma deformação, um retorno a um estado originário.
Em cada fase de seus processos criativos e em cada trabalho que apresenta, é possível sentir Marc Davi olhando, de modo quase perturbador, bem no fundo dos olhos do desconhecido, não nos sendo dado saber se Marc Davi o desafia ou com ele flerta, ou os dois.
Seguramente este texto não dará conta do conjunto de obras que o artista apresenta no âmbito do Ciclo de Mostras BDMG Cultural 2021, mas felizmente, “dar conta” não é tarefa da arte nem tampouco dos textos que ao lado dela querem caminhar. Vou aqui individuar alguns de seus trabalhos, ciente, portanto, de que esse exercício de organização racional não nos colocará a salvo da explosão.
Da sensação de elasticidade quando se marcha sobre cadáveres
Performance e instalação (4 a 6 horas)
2016-2018
Uma das obras apresentadas na ocasião do Ciclo, “Da sensação de elasticidade quando se marcha sobre cadáveres” é uma longa performance acompanhada de uma instalação, em que Marc Davi continuamente arranca papéis de parede da parede, os cola em seu corpo e repete esse gesto ao revés.
Fazendo confundir sua própria pele com as peles do ambiente – parede e chão –, Marc Davi dilui as delimitações dos corpos antes possivelmente classificados em humanos, ambientais, arquitetônicos, de carne e de papel, assim como funde suas composições – parede, pele, sague, suor, cola.
A convocação ao reconhecimento de que há uma espécie de comunhão ou indistinção entre os corpos, suas estruturas e composições é um exercício extremamente caro à arte desde pelo menos o início do século XX, quando ela passa a se prestar mais enfaticamente a nos alertar sobre o fato de nossas tentativas de racionalizar e organizar o mundo não terem lastro na realidade sensível. E o modo como Marc Davi participa dessas formulações – que ainda têm um caminho infinito a ser percorrido – é ardente. Arrancando camadas de pele tanto do ambiente quanto do seu próprio corpo, o artista esfola a si e à galeria, ao passo que o espectador referenda, sem alternativa, esse processo.
Camisa social
Performance (30-40 min)
2009
Então sonhei uma coisa que vou tentar reproduzir. Trata-se de um filme que eu assistia. Tinha um homem que imitava artista de cinema. E tudo que esse homem fazia era por sua vez imitado por outros e outros. Qualquer gesto. E havia a propaganda de uma bebida chamada Zerbino. O homem pegava a garrafa de Zerbino e levava-a à boca. Então todos pegavam uma garrafa de Zerbino e levavam-na à boca. No meio o homem que imitava artista de cinema dizia: este é um filme de propaganda de Zerbino e Zerbino na verdade não presta. Mas não era o final. O homem retomava a bebida e bebia. E assim faziam todos: era fatal. Zerbino era uma instituição mais forte que o homem. As mulheres a essa altura pareciam aeromoças. As aeromoças são desidratadas – é preciso acrescentar-lhes ao pó bastante água para se tornarem leite. É um filme de pessoas automáticas que sabem aguda e gravemente que são automáticas e que não há escapatória.
Clarice Lispector
Para outra performance exibida na mostra, “Camisa social”, o artista se apresenta vestindo um traje confeccionado em tamanho agigantado e em tecido com estampa xadrez.
Miniaturizado pelas grandes dimensões da vestimenta, Marc Davi, ainda que preanuncie alguma pista (falsa?), dado o título do trabalho, coloca em xeque a própria possibilidade de precisarmos que roupa, de fato, ele veste: camisa, camisola, vestido? Os limites são tênues e as classificações necessariamente coexistirão, informando que todas elas – camisa, camisola, vestido – são possibilidades, na mesma medida em que não passam de construções, convenções arbitrárias.
Sigamos, no entanto, a pista, ainda que possa ser falsa, dada pelo título, e analisemos o caso da camisa. Aqui Marc Davi acentua o peso que a necessidade de pertencimento a um determinado grupo tem sobre nós.
A camisa social, indumentária obrigatória na sociedade ocidental, é um dos principais símbolos da tentativa de padronização e desindividualização dos sujeitos, do apagamento de suas idiossincrasias e da transformação em “uni-formes”. Se tomamos um caso isolado de um indivíduo “de camisa”, sabemos que ali ela cumpre a função de atribuir muito claramente um papel a quem se apresenta trajando-a, papel esse que é o da adequação, da validação e da solicitação de reconhecimento dentro de uma pré-determinada tipificação muito ligada, por sua vez, ao produtivismo.
A composição da nossa imagem através do ato de forjar uma aparência diz, parafraseando o filósofo Emanuele Coccia, de valermo-nos de traços do mundo – tecidos, cores, maquiagens, adereços e objetos diversos – para, a partir dessa absorção do outro, ou seja, desses elementos externos, tornarmo-nos mais reconhecíveis do que seríamos sem essa ornamentação. Assim, a moda e todo ornamento sobreposto a um corpo dizem mais do que o corpo sem a roupa ou indumentária diria de si: “aquilo que é mais exterior fala daquilo que é mais interior”.
Vale especular ainda sobre a estampa escolhida para o tecido de seu traje, o “xadrez”. A forma quadriculada, essa grade que orquestra, juntamente com o molde da camisa, certa prisão social, tem suas origens em um momento da história em que se verificou a utilidade da ordenação dos corpos em relação aos territórios que ocupam.
O traçado ortogonal, tão geométrico quanto rigoroso, começa a ser aplicado sistematicamente no período da diáspora grega, por volta do séc. V a.C., no âmbito do planejamento urbano. Com o crescimento das famílias e a consequente escassez de terras para que se plantasse e se vivesse na Grécia continental, os gregos passaram a fundar uma série de cidades em torno do Mediterrâneo, como Nápoles, Mônaco, Nice, dentre outras, e muitas delas foram habitadas a partir de uma planta arquitetônica na qual as vias dispunham-se de modo tal a formar ângulos retos em suas interseções.
Ao se fundar uma cidade, o fogo sagrado (origem da tocha olímpica) era instalado no local central do plano hipodâmico ortogonal, local onde seriam erguidos futuramente os prédios públicos (como os Templos). A partir daí, sorteavam-se os lotes entre todos aqueles que a colônia habitariam.
Obviamente o sorteio não refletia a pura sorte, já que os lotes centrais eram “sorteados” entre determinadas famílias, restando os periféricos a outras.
E assim, a imagem da geometria ortogonal nos traz, desde seus primeiros registros históricos, a normatização da vida, a determinação de quais lugares devem ou não ser ocupados por estas ou aquelas pessoas.
Ensaio para um corpo
Performance (40 min)
2013
Tendo em mente a imagem escultórica que se forma quando tentamos tirar uma roupa e nossos membros ficam presos, Marc Davi, em “Ensaio para um corpo”, remove tanto as peles-camadas de tecido que cobrem e limitam um objeto-corpo quanto seu preenchimento. Numa aparente tentativa de, sobre eles, revelar alguma verdade, Marc Davi parece cavar ou esburacar o corpo, como se assim fosse possível encontrar sua real substância.
Se cortas uma cebola pelo meio, poderás ver e contar todas as túnicas ou cascas que formam círculos concêntricos ao redor dela. Da mesma maneira, se seccionas uma cabeça humana pelo meio, contarás primeiro o couro cabeludo, depois a epiderme, a carne muscular e o pericrânio, depois o crânio, e dentro dele, a dura-mater, a pia-mater e o cérebro, e de novo, a pia-mater e a dura-mater, e a rete mirabile e também o osso que as suporta.
A recuperação desta passagem de Leonardo da Vinci por Didi-Huberman sobre a analogia entre o caráter estratificado do cérebro e a composição de uma cebola serviu ao francês para sintetizar seu conceito de “paradoxo pelicular” que, por sua vez, nada mais é do que a afirmação de que não existe verdade transcendental alguma a ser revelada: a casca é o caroço. “Não há mais hierarquia possível doravante entre o centro e a periferia”, adverte Didi-Huberman. “Uma solidariedade perturbadora, baseada no contato – mas também em tênues interstícios –, ata o invólucro e a coisa envolvida”. Em uma reflexão análoga, não importa o quanto escave e descasque, removendo camadas, Marc Davi nos mostra que não se alcançará nenhum espaço sublime, mas sim a própria matéria que já nos havia sido oferecida desde sempre pela sua superfície.
A potência dos trabalhos de Marc Davi é desmedida e de uma erudição e poder de síntese singulares. Os gestos de destruição frequentemente ensaiados e coreografados por Marc Davi são, como em “Ensaio para um corpo”, deflagradores de uma espécie de eterno retorno que desierarquiza. Ele implode a linguagem da arte (mesmo que já se tenha assumido e assimilado que não há linguagem propriamente artística) e com essa implosão faz explodir questões de ordem política, lançando esses estilhaços que, onde quer que pousem ou o que quer que firam, o farão aos modos de uma ferida aberta na terra, a partir da qual necessariamente algo brotará. É, portanto, uma prática artística cujos processos se assemelham a uma cosmogonia, não fosse o fato de buscar a fertilidade e não guerrear contra o caos.
Marina Câmara
Professora, curadora e crítica independente