Sangue de Bairro, Puro Sangue
Dá pra pensar essas fotografias “Sangue de Bairro”, do Affonso Uchôa e do Desali, do ponto de vista do cachorro de rua, aquele mesmo que olha, com apetite de festa, a moça numa das imagens do conjunto, bunda pra nós, em frente à máquina de música.
O cachorro de rua, dentro de casa, continua na rua, é puro bairro: nas fotos os pixos pulam pro meio das casas, com recados, pequenos diários nas paredes dos cômodos, anotações, tags internas que fazem par com os desenhos de vergalhões compondo pintura no céu, as sombras, as marcas do concreto no sol de rachar, o coração e a planta colados num muro de outra fotografia, tão apaixonados como um tiro de pó compartilhado em cima do celular. O cachorro olha sem espanto o mundo que quer viver esse amor furioso, tem arma em cima da cama que ele olha sem saber o que é. Pra se viver tem que ter uma vontade de tiro que ele tem, só cai se enxotado. E se enxotado, não sai. Ele é uma permanência. Uma assinatura. O cachorro de rua é a única coisa que a gente tem, é uma memória embaixo da pele, o cachorro de rua é uma urgência que vai nas fotos, essa pouca parada da pessoa pra olhar a objetiva e dizer que a tatoo sou eu, o dedo esticado em arminha, a mão na cara sou eu, o riso largo também, a bunda pra objetiva é meu apetite, porque a gente do Nacional, esse bairro de Contagem em Minas Gerais, que aparece aí, não tem fome como o noticiário planta, é povo do apetite, você já reparou que, enquanto der comida, o cachorro de rua come? Isso não é fome. É vontade de esplendor (palavra, aliás, que os artistas usam pra descrever a atmosfera do trabalho).
O cachorro de rua não tem partido político, nem teoria estética, não tem pudorzinho de olhar com pena pro sujeito que usa crack, aliás, a moça da máquina é trans, cis, é puta, evangélica? Pro cachorro tanto faz, ele não mexe com gratidão, resiliência, empoderamento, palavra de ordem. Ele está. Ou você está dentro do lugar ou é mentira. O cachorro de rua que aparece no bar nunca foi e nunca é de fora do mundo. Ele entra na casa de porta aberta e vê a dona pelada e os colchões empilhados, o rango arrumado rápido, o cachimbo, alguém que saiu do banho, um resto de pinga, tudo posto em altar (outro termo dos artistas pra identificar várias imagens). A gente pensa que o altar do ritual é um lugar muito arrumado, com uns objetos dispostos em duplas, umas paralelas, uma geometria de reta. Às vezes tem disso aí sim. Mas o ritual é também um desacerto porque só existe se alguém deixa uma pegada ali, todo rito é resto, como os tocos de vela de altar que sobram num templo ou o fogão imundo e a marca do bafo do cachorro de rua que fica no vermelhão do buteco onde se deitou. Tem uma outra ordem esse altar com roupas jogadas num canto nas fotografias, é uma organização mais cachorra do rito. A gente vê uma bíblia aberta com uma carteira de trabalho em cima (a vida sendo rescindida sempre e sempre voltando pra casa, como o cachorro de rua). Perto da carteira tem uma foto puxando a vista pra imagem dentro da imagem, pra que a gente perambule por lá como o cachorro, em estado de esplendor ignorante, estado de rito, tudo é ritual, tudo é marca desse apetite.
O cachorro de rua, esse famoso bicho não pet, sempre pertenceu ao mundo, a esse mundo de Contagem, se enxotado, permanece, repito, se morto, fica. É uma insistência, um estado, não tem pena ou horror, é uma coisa que atravessa. A moça da fotografia que o bicho olha lá em cima neste texto é a Sandra, chamada também de Sandrão no bairro. O “ão” do aumentativo é um som único da nossa língua, é um esplendor, tem de falar com a boca cheia. Sempre dá a impressão de que o “ão” é um som vermelho como o Nacional, assim mesmo, passional como o cachorro de rua, puro sangue.
Marta Neves